Conheci Rokan e Ranny quando fomos filmar a entrevista da Amercy no parque Vila Lobos. Logo no portão, quando conversávamos com os seguranças do parque, vi um senhor elegante com um cordão dourado escrito ROKAN e reconheci o nome, já tinha visto escrito na listinha que a Marília havia me mostrado com os nomes dos moradores dos “Sem Terra”. Conversamos um pouco por lá e em seguida marcamos a entrevista que foi feita no apartamento do casal. Eles não moram no Cingapura, vivem num apartamento no bairro do Limão, próximo ao terreno.
De novo, como acontece em todas as casas dos circenses que entrevistamos, o circo “transborda” ali… é bonito ver como o trabalho, a profissão, o ofício… seja lá o nome que a gente dá pra isso, invade a vida do artista e deixa sua casa uma casa de artista. Logo na porta há uma plaquinha “Aqui vive um mago”. Sim, e também vive uma mulher linda, um garoto muito simpático, um coelho que não tem nome e várias pombas. E muitas coisas são decoradas com cartas de baralho, xícaras de café, bule, pratinhos, cinzeiro, tudo com naipes de baralho. Eles nos recebem como artistas, não sei se prepararam de propósito, mas o figurino dos dois combinavam e Rokan estava com uma camiseta que também era enfeitada com uma carta de baralho. Eles começam contando que mágico não era uma categoria que fazia parte de circo. Ranny explica “na verdade na origem o circo era um espetáculo de cavalos, com o tempo, ele foi passando por processos e agregando outros artistas, se eu não me engano o palhaço foi o primeiro que entrou para fazer parte do espetáculo.” Ranny fala com tanta propriedade sobre a história do circo que eu afirmo: Você é de família circense. E ela: “não, eu aderi ao circo quando conheci o Rokan”. Rokan, também não é de família circense. “Somos agregados mas apaixonados.”
Rokan é nome artístico de Nilton Ferreira dos Santos. “Na época que eu comecei fazer mágica todos tinham um pseudônimo, aí eu tinha que arrumar um. Tinha um filme naquela época que se chamava Rocambole, era um mágico que fazia o filme, um excelente mágico, ele fazia um ladrão e roubava um cofre. Aí eu falei, se eu colocar rocambole vou copiar o nome do cara, mas se eu tirar o bole e colocar o K e um N vira Rokan, é diferente!”
Ranny é o nome artístico de Maria Goreti de Souza Santos. “Na minha primeira entrada, quando comecei a trabalhar com ele eu gostava muito do nome Tabata, que era a filha da Feiticeira, mas todos pensavam que era a filha da Feiticeira de fato… Foi anunciado só uma vez. Depois eu era a partner, “Rokan o mágico dos dedos de ouro e sua partner”. A partner no circo é quase que nada, eles não falam o nome da partner. Mas eu falei um dia, Rokan, não fala partner, porque quem está na plateia fica achando que o nome de toda mulher que entra é partner. Então ficou só Rokan. Aí, um dia precisamos de um documento para comprovar que eu era artista, que eu trabalhava e meu nome não estava em lugar nenhum. No terreno do Anhembi, tinha um amigo nosso que era domador, e sempre que passava perto do Rokan dizia, Ô Marajá! Porque domador precisa estar ligado o tempo todo, porque tem tigre e não pode descuidar, e o Souza corria o dia inteiro pra lá e pra cá e o Rokan deitado vendo vídeos de mágica. Mas ele achava que o Rokan não estava fazendo nada. Eu fazia palavras cruzadas na época e mulher de marajá é Ranny, aí eu falei, ele é o marajá e eu sou a mulher do marajá aí eu achei que soou legal e ficou Rokan e Ranny.
Rokan conta que começou a fazer mágica antes de ir para o circo. “Comecei a fazer mágica com 16 anos quando um vendedor de livros fez uma mágica com um dadinho e me ensinou. Aí meu interesse pela mágica foi crescendo, eu fazia mágica para todo mundo. Eu trabalhava como office boy e descobri uma loja de mágicas na rua 24 de maio. Eu ficava sempre olhando e um dia vi o vendedor manipular uma bolinha. Mas o jogo das bolinhas era muito caro e eu não tinha dinheiro pra comprar. No fundo do meu quintal tinha um limoeiro, aí eu peguei um limão e comecei a manipular. Imagina o dia todo com um limão no bolso do paletó rodando com uma mão e com a outra, peguei uma habilidade enorme. Aí, voltei na loja e pedi pra ver a bolinha, comecei a manipular e o vendedor: Nossa, você manipula bem!! E fez uma mágica para a bolinha desaparecer de uma maneira que eu vi e eu perguntei, tem mais alguma coisa? E ele começou a me mostrar achando que eu fosse mágico. Aí eu cheguei em casa treinei, treinei e juntei dinheiro para comprar as bolinhas de manipulação. Na mesma loja, vi um anúncio que teria um show de mágica no Natal. Fui com o meu primo e fiz uma premonição: Eu vou trabalhar nesse show. Aí fui seguindo, fiquei sócio da associação de mágicos e comecei a participar trabalhando nas reuniões. Um dia teve um torneio interno e eu ganhei o primeiro prêmio. Aí, o presidente me chamou para encerrar o show de natal e minha premonição deu certo.”
“A partir daí comecei a fazer shows em boates, e surgiram convites de circos pequenos, o Circo do Chiquinho, o Circo do Carlito, o Circo Guaraciaba… aí um dia eu estava no café dos artistas e chegou o secretário do circo Garcia, o senhor Lamas, e ele me perguntou se me interessava fazer a estreia em Ribeirão Preto. Aí eu fui e depois me chamaram para seguir com o circo e a gente foi. Aí entramos para o circo de vez.
Isso foi em 79 e Rokan e Ranny já estavam casados. Eles se conheceram num circo pequeno, de bairro. Ele tinha ido passear e ela tinha ido assistir. “Em menos de um ano já estávamos casados”.
Ranny conta “eu era bancária, eu era só a mulher do mágico, só uma companheira que dava uma força, que levava a mala para o camarim, aí lá já era o espaço dele, eu não me envolvia com o pessoal de circo porque o meu lugar não era ali, eu não fazia parte daquele mundo, eu sou uma pessoa que tenho muita noção de quem eu sou, aquele espaço era pra quem trabalha.”
Mas ao mesmo tempo ela diz ‘’desde que a gente nasce, quando a gente conhece o brilho a gente quer brilhar, antes de conhecê-lo eu já me imaginava num espetáculo, porque na escola eu já participava de orfeão. Eu já tinha alguma coisa, o artista já nasce com alguma coisa. Eu pra minha idade eu era a menor da turma, aí ficava assim, uma bonequinha que fala bem. Aí eu imaginava assim, já pensou se aparece uma coisa e explode e eu apareço lá no meio! Mas nem imaginava que isso era mágica, eu nunca tinha visto mágica, eu fui ver mágica eu já tinha uns 16 anos. Meu irmão ganhou uma caixa de mágica, aí você pega o que tem dentro da caixa e não tem graça nenhuma porque falta o charme. Não é o número que é importante mas como você apresenta o número. Eu achava meio sem graça aquilo, você pega um palito tem que atravessar o alfinete e não acontecia nada. Comecei a namorar o Rokan no dia 21 de novembro e em dezembro ele ia fazer um show para uma empresa e me convidou aí, se faltava alguma coisa para apaixonar foi ali. Ele fez uma mágica e foi tudo o que eu imaginava, a mão, o jeito, a movimentação… realmente foi o detalhe que estava faltando e eu falei “mas ele é tudo isso!” e ainda tem um amor pelo que ele está fazendo! Porque eu acho que o artista quando ele é verdadeiro ele consegue empolgar a plateia, se ele não empolga a plateia ele não está sendo verdadeiro, ele está fazendo ou pelo dinheiro, ou porque ele tem que cumprir o programa então, quem ama o que faz, é com dor de barriga, é com dor de cabeça, é com diarreia. Tem um caso clássico de diarreia no circo inteiro. No circo Garcia, depois de uma ceia de natal com um buffet finíssimo descobrimos que a maionese estava mal sucedida, complementa Rokan. Agora vc imagina a cia inteira entre picadeiro e banheiro. Rokan comenta: “A cia toda, menos o mágico. Porque o mágico tem um instinto, eu falei pra ela, não come essa maionese que esta estragada, ela não comeu, eu não comi e a gente não teve nada.”
“Eu me apaixonei pelo trabalho dele, vi que ele era uma pessoa que se entregava para o que fazia, e ele faz manipulação que é o mais bonito de tudo, tem uma coisa de mexer com a mão, um charme assim que você não consegue fazer, você tem que ser pra fazer.”
“Eu sempre fui a mulher do mágico e as pessoas perguntavam, mas ela não trabalha? Ela é bonitinha, coloca ela ali pra segurar. Tinha show que as pessoas até me convidavam, queriam pagar cachê porque eu tinha um sorriso bonito. Mas ele dizia não. Aí, em uma apresentação no Ginásio do Ibirapuera, que é imenso, ele precisava colocar mágicas maiores pra que a plateia que tivesse na arquibancada pudesse ver, aí eu fui obrigada a fazer parte desse mundo artístico.”
Rokan conta “ela sempre teve medo de entrar no palco. Eu fui fazer um show e pensei, vou fazer ela entrar. Fiz assim, pedi pra ela segurar um copo de água na coxia e disse, na hora que eu pedir você me entrega tá? Era um número que eu fazia com jornal, jogava água no jornal e ele desaparecia.” Aí quando ele precisou da água, chamou Ranny e fez com que ela ficasse lá o número inteiro, foi a estréia dela.
“Na verdade isso foi um teste que ele fez comigo, ele quis ver como eu ia me portar na frente de uma plateia eu entrei e me posicionei, o coração disparado….Eu já tinha participado de orfeão na escola, de jogral… você sabe que tá todo mundo te olhando… (orfeão é um grupo que canta) e eu já tinha essa coisa, a professora dizia, se pousar um elefante no nariz não é para se mexer. Aí começou o meu treinamento, vc está em cena mantenha-se numa postura elegante, mantenha-se sorrindo e esquece quem está em volta, quem está na frente, quem está atrás.”
“Aí, entrei no picadeiro pra ser partner, depois fui ser dançarina. Eu sou uma pessoa que a emoção fala mais que eu. Estávamos para estreiar em São Paulo, figurino novo, fantástico, eu entrava de mascara, de palhaço, ninguém ia ver nossa cara mas eu estava muito nervosa e quando terminou eu chorava tanto porque tinha dado certo… é aquela coisa da entrega, não importa se tem uma máscara te cobrindo, vc tem que dar o melhor. Eu sorria por baixo da mascara. E as pessoas diziam, ai como vc é boba, foi só um bailado. Pra mim não foi só um bailado, pra mim, ninguém sabia que aquela era eu mas eu sabia que eu fiz a minha parte bem. E é isso o profissional, não é quem vive daquilo, mas é quem faz bem, o circo é isso, é o profissional que é dedicado a arte dele, ele é dedicado ao figurino, ele é dedicado com o horário, ele é dedicado com os colegas e com o ambiente dele. Esse é o profissional, é um cara que todo mundo quer trabalhar porque o espetáculo rende. E quando o espetáculo rende, vem público, o espetáculo corre alegre, tudo dá certo, tudo tem brilho. Se vc entra num espetáculo e as pessoas não tem esse entrosamento vc sente ele pesado, o próprio público,chega e fica constrangido de aplaudir, porque não tem aquela energia. O publico percebe. Essa coisa de energia, não é boato, não é lenda não é fabula, é de verdade. A gente emana coisa boa, se vc vai fazer um trabalho, sincero, se vc se entrega o público sente aquilo e quando vc ve determinado número o público não agradou as pessoas falam o público está ruim, estão com preguiça de aplaudir, mas quando o profissional entra aí… não tem plateia que não aplauda…
Ou de repente quando vc vai comprimentar e vc bate o olho na pessoa que tá te olhando e o sorriso está até aqui porque vc passou alegria para ela. As vezes eu saio chorando e ele fala o que foi, eu falo que na hora que eu fui comprimentar eu senti a emoção da pessoa que tá me agradecendo porque foi um momento bom que ela passou ali,. E é isso que vale a pena. A gente briga pela memória do circo, pelo respeito pelo circo… se a gente, entre nós, circenses, agregados ou de famílias tradicionais… a gente não teve esse benefício de ter nascido debaixo da lona, a gente escolheu o circo a gente adotou o circo como nossa casa a gente se dedica para as pessoas, no caso dele que é magico as pessoas falam que a gente esta ali para enganar, eles falam, vc vai me enganar mas eu vou descobrir, a gente não quer enganar ninguém a gente quer só passar a fantasia de que vc pode fazer, independente de como vc vai fazer, vc vai fazer, se vc pegar um lenço e conseguir tirar um pombo…lógico que atrás disso tem toda uma técnica mas vc pode pegar uma coisa no seu dia a dia, um trabalho que é difícil e fazer uma mágica a partir daí. Vc vai ser o mágico da sua vida, vc vai transformar.
É emocionante ouvir Ranny falar de circo…! Ela fala tudo com tanta propriedade, com tanto encantamento, com tanta ética… aí fico aqui pensando… ela diz que é “agregada” porque não nasceu debaixo da lona. Os agregados são aqueles que não têm a “serragem correndo nas veias”, que não são de famílias tradicionais circenses. É… talvez a serragem não corre nas veias… mas na alma…! Porque ela mesma disse, tem coisas que você não consegue fazer, você precisa ser pra fazer. É um casal que é e faz!
Durante a entrevista Ranny titubeou para contar um episódio que quase fez com que ela desistisse do circo…
“A gente estava no circo Garcia em Campinas e lá aconteceu um negócio muito chato. A gente tinha um amigo contorcionista que se chamava Omar, um excelente contorcionista. Ele entrava no picadeiro com uma postura…tinha uma banquilha baixinha e punha a mão assim e começava o tema da missão impossível e ele fazendo contorção em cima da banquilha aproveitando cada movimento da música. E ele terminava de uma maneira fantástica, era um artista espetacular. E saía com a mesma elegância, comprimentava e ia. E ele era uma pessoa muito querida no circo.A gente tinha um filho pequeno, não tinha trailer ficava vindo para são Paulo e tinha dificuldade para deixar o bebe. O omar e pegava o bebê e dizia, vamos lá assistir sua mãe… ficava com o bebê o tempo todo. Terminou o espetáculo de sexta-feira, o nosso padrinho de casamento era um empresário e quis levar a gente para comer numa pizzaria, e o Rokan falou, vou levar o Omar, vou chamar ele p ir com a gente sair um pouco do circo… mas o Omar disse não, nós vamos fazer um churrasquinho, as meninas estão aqui, as meninas eram as bailarinas, ele ficou. No dia seguinte, a gente está assistindo um jornal local da região de Campinas e aí eu escuto assim “O contorcionista do circo Garcia, Omar Alcides Cegóvia foi assassinado nesta madrugada…” e aí caiu o mundo, porque vc não acredita que num ambiente de tanta alegria vai acontecer uma coisa dessas. Aí a gente correu pro circo, chegamos lá estava tudo muito triste, todo mundo chorando porque ele era muito querido. Foi um bilheteiro que tinha dentro do circo. E até aí tudo bem, acontece aqui, acontece lá, acontece em qualquer lugar… mas o que mais magoou é que era um sábado, três horas da tarde tinha espetáculo, cinco e meia outro e nove da noite outro, até aí tudo bem a gente entende o show tem que continuar, isso é milenar, o show tem que continuar, mas o que doeu é que três horas da tarde, a hora que estava começando o espetáculo, todo mundo com aquela dor no coração sorrindo e chorando ao mesmo tempo, aí chegaram umas meninas e disseram, vcs sabiam que o Omar já foi enterrado? Como assim enterrado? Porque morreu de madrugada, como assim já foi enterrado? e foi… pra não fazer escândalo na mídia… ele foi enterrado na hora do espetáculo…aquilo foi… o dia mais difícil de trabalhar… nem quando meu pai faleceu, nem quando a mae dele faleceu, a gente sofreu tanto pra trabalhar. O espetáculo continuou a dona Carola trabalhava no espetáculo… aí falaram, não é pra falar com a imprensa, não é pra comentar… aí o Rokan comentou, gente muito mais conhecida todo mundo fala, porque não pode falar que o cara morreu? Aí a dona Carola justificou, que quanto mais fala, mais a gente vai ficar aumentando o assunto, e não é um lado legal pra ser lembrado.Aí o que fizemos, trabalhamos com o coração na mão e depois a mídia foi com a gente até o cemitério, essa parte foi bonita, nós fomos de carreata do circo até o cemitério. Isso me entristeceu muito, eu falei pra ele, se vc quiser continuar vc continua, eu não vou conseguir entrar e sorrir igual eu não vou ser verdadeira, aí eu vim pra são Paulo e logo depois ele veio. Aí voltei grávida, não sabia que estava gravida. Aí meu filho nasceu no dia 20 de janeiro e no dia 21 de fevereiro voltamos para o circo, já com aquele calo… eu não tinha esquecido…vc vê até hoje, tem 32 anos e eu ainda fiquei emocionada mas a gente aprende que cada um tem um jeito de interpretar a dor, de sentir e de ser. Aì a gente foi p sul, depois minas, depois centro oeste… e foi nossa vida por mais de 14 anos, itinerante.
“Depois que o circo rodou bastante chegamos em SP, o nosso filho mais velho já estava com 9 anos de idade, o outro estava com 7, então eu falei, vamos dar um tempo para estabilizar a nossa vida, dar a oportunidade dos meninos se fixarem, escolherem o que eles querem fazer, porque até o ensino fundamental, você conseguia levar legal trabalhando no circo mas depois é bem sacrificante para o circenses, porque de um estado para o currículo muda.
“E tem um detalhe, a educação da criança do circo é diferente, uma crianças não vai te chamar Ô Priscila, mas dona Priscila, a senhora Priscila, no circo a gente se trata assim até hoje Oi dona Goreti, oi senhor Rokan, eles tratam assim. Eu prezo muito isso. A educação é diferente, o respeito é diferente. O circo tem essa coisa do respeito. As novas gerações estão perdendo um pouco isso, porque? a internet, a nova linguagem, as releituras, que eu não sei pra que tanta releitura, estão acabando com uma coisa que não podiam acabar. Esse respeito, e a gente tinha isso no nosso espaço, a gente saia e deixava a casa destrancada e todo mundo respeitava. A gente não interfere na privacidade do outro, o circo tem isso apesar da gente viver num ambiente que parece frágil, do trailer ser uma coisa que parece asism muito exposta, vc fala dentro do trailer e do lado de fora vc ouve, mas cada um tem a sua vida individualizada, ninguém invade o espaço de ninguém é muito legal esse respeito que nos tínhamos e que as gerações mais antigas do circo até hoje preservam. Não falar malapalavras, malapalavras é palavrão. Mas a partir do momento que você liga a televisão e vê um apresentador de televisão te cuspindo um monte de porcaria, palavrão explícito, aquilo acaba virando coloquial e não é mais palavrão. Então como você vai falar para o menino que ele não pode falar determinada palavra porque é palavrão. Hoje a televisão está escancarando coisas terríveis e é o que está acabando com a arte.”
Rokan e Ranny viveram no terreno do Anhembi e em seguida foram para o terreno do bairro do Limão.
“Chegamos no Anhembi e já estavam a família Sbano, o senhor Zurka Sbano, o Eduardo Sbano e a família do Marcelo Sbano, a Liliana da família do senhor Maranhão, a Marília já estava lá com o Hilário e queria guardar um pedacinho para a Liliana que estava saindo do Orfei. E aí eu vi que era muito legal morar ali porque a gente se cuidava, a gente não tinha segurança mas ninguém entrava ali. Eu não sei o que as pessoas da rua pensavam da gente mas ninguém entrava e sempre tinha alguém do circo ali no terreno, tinha cachorro. Aí nossa comunidade começou a crescer. . Tinha escola perto, os meninos tinham essa facilidade.
Aí um dia chegou um senhor e chamou todos para uma reunião, “vcs estão morando aqui mas nos vamos fazer o sambódromo” e aí a gente falou pra eles que a gente não era invasor que o espaço era nosso, era do circo.Eu até levantei a bandeira, nós não queremos nada, a gente não quer sacramentar “daqui eu não saio daqui ninguém me tira”, vcs querem o espaço ok a gente sai, só que a gente quer um espaço para nós continuarmos morando porque o circo precisa disso.
“O Zurka Sbano tinha número de cavalos e não pretendia mais viajar, tinha uma barraca enorme pra cuidar dos cavalos dele, ele fazia os cavalos se exercitarem, ele precisava de um espaço grande e a gente já sabia que não sairia mais. Os filhos trabalhavam junto com o pai, tinham a oportunidade de fazer cachê aqui em são Paulo sem estar se locomovendo com toda aquela parafernália de circo, levando cavalo, arrumando caminhão etc aí já tínhamos três famílias. Nós precisávamos primeiro fixar um ponto, ter uma casa para depois a gente partir p estrada novamente. A Marília também não pretendia mais viajar. Aquilo foi virando uma família, se protegendo.”
“Na época, o foco era todo aqui em São Paulo, tinha o café dos artistas na São João, ninguém tinha telefone, então era lá que os contratos aconteciam, vinham os empresários… Ali fervilhava, até o Silvio Santos frequentava. Era aí que as notícias chegavam.”
“A Gente precisava desse espaço fixo porque, a São Joao praticamente não existia mais, as pessoas iam se cumprimentavam mas já não era mais aquele foco comercial para o circense de contatos.”
“O espaço nunca foi destinado a ser circo-escola, os Sbanos treinavam os filhos, meus filhos treinavam mágica…Mas o circo não precisa de circo-escola. Eu trabalho num ambiente que o Dover trabalha, meu filho quer ser trapezista, quem melhor do que ele para dar as noções para o meu filho? E sem contar que a criança de circo, que foi batizada lá dentro, já sabe tudo… só de olhar já entende.Tem criança de circo que vc coloca num aparelho e ela faz um número como se já tivesse feito a vida inteira, porque dentro daquele imaginário dela, ela se viu subindo na corda… eles brincam de circo.Meus filhos brincavam de magico, eram mágicos. O Júnior tinha uns dois anos, o Rokan entrava ele já entrava na lateral e fazia os trejeitos, as movimentações…tudo no imaginário dele. A criança de circo brinca de circo!”
“Antes da gente, no Anhembi, tinha a Academia Piollin de Artes Circenses, onde muitos circenses davam aula. Mas todo mundo foi embora. Nas escolas de circo, o que vc ganha tem que valer a pena, porque aparece um empresário e te paga muito melhor, vc vai ficar dando aula? A coisa do circo escola voltou muito com a Dra Alda Marco Antonio, na época do Quercia, que fez a coisa do circo escola para tirar a molecada da rua, não era com a intenção de formar artistas circenses era mais para terem uma atividade num ambiente sadio. A gente torceu muito p não acabar porque as atividades de circo são uma maneira de vc ter condicionamento físico, diversão e cultura.”
Quando ouvimos as histórias que Ranny conta, conseguimos vizualizar exatamente o momento de transição que o circo brasileiro estava passando… sair do circo que viajava para começar a fazer cachê em São Paulo, o início do projeto de escolas de circo junto com a necessidade de “trabalhar parado”. A importância do café dos artistas enquanto lugar comercial… e a falta que fez quando parou de existir enquanto tal… e todas as dificuldades que o circense foi encontrando nesta transição.
A própria questão do terreno destinado aos circenses foi confuso tanto para quem gerenciava como para os próprios circenses… “O terreno dos sem terra foi bom porque qualquer artista que chegasse em são Paulo sem contrato tinha lugar p ficar, a idéia foi boa porque ele ficava la uma semana de repente aparecia um contrato e já saia. Mandaram a gente criar galinha pra vender ovo, e o Rokan falava, eu sou artista! Eu vou criar galinha? O espaço era para quando as pessoas estivessem chegando de viagem colocar os trailers ali. As pessoas deixavam o trailer e iam ver documentação do carro, documentação própria, documentação eleitoral,problema médico.”
Sobre a invasão, eles contam “vieram falar com a gente, vc vai tirar o trailer, o que vc vai fazer com ele? vou vender! e o que vc vai fazer com o espaço que ele esta ocupando? simplesmente desocupar!! Como eu vou vender uma coisa que não é minha? isso estragou os sem terra… Porque alguém começou a lotear o terreno e começou a vender. Não vou citar nomes, porque a pessoa que dizem que começou a fazer isso nunca me deu a entender que de fato tivesse feito. E aí o que acontecia, vc ia dormir tinha um barraco do lado do seu trailer, de manhã, quando amanhecia tinham 5 era a noite inteira o pessoal martelando, cortando madeira…aí o que os circenses fizeram? entraram no trailer e caíram no mundo porque aquilo virou terra de ninguém…A gente saiu antes da invasão. Aí começou o problema de droga, aí descabou mesmo… ficou um ambiente que não era pra gente mais… pra gente de circo né… O problema era que vc tinha que ficar ali p ganhar o apartamento e muita gente ficou com medo porque começou a entrar gente muito estranha, crimes graves aconteciam ali dentro. Como eu vou sair e viajar, no meu caso eu tinha um filho, eu saía, ia fazer um cruzeiro e deixava meus filhos ali, mas tinha minha comadre que cuidava…tinha toda a minha família do circo cuidando deles… aí começava a sumir botijão de gás, vassoura, bicicleta, deixou fora do trailer… sumia…e com agente não acontecia isso.”
“O importante de tudo isso é que hoje a gente vê os nossos amigos bens instalados lá, a Marília tem o apartamento dela, o Puchy, o Ivan, a Amercy, a gente fica feliz por isso tb.”
E para finalizar a conversa, Ranny deixa um pedido.
“Eu gostaria muito que esse documentário deixasse a memória do circo, a reverência daqueles que já foram e que o espírito continue para os que vão chegar. O respeito por aquele que começou num circo de pano de roda, no circo sem lona, no circo empanado, no circo sem nada, e o espaço pro circense chegar e estar em casa, ir buscar um contrato, sem ter que sair de um circo se sujeitando a ganhar menos porque precisa sair deste pra ir pra outro lugar, porque não tem pra onde ir. Então ele sabe que ele vai chegar em são Paulo, vai ter o lugar dele, vai fazer os contatos dele e poder escolher. Porque acontece muito com a gente, quando a gente está empregado aparecem muitas ofertas, quando vc precisa, que vc quer sair, a cia tá lotada, meu espetáculo está muito longo… aí se seu número custa mil ele vai te oferecer 200 porque é vc que está pedindo emprego não é ele que tá vindo te buscar. Espero que o circo continue crescendo mas os circenses junto com ele. Porque a gente tem grandes circos hoje, grandes empresários circenses mas o artista na parte financeira não está crescendo tanto como deveria. Mesmo porque o circense é …vive hoje e amanha, depois a gente vê… vamos comprar hoje, vamos fazer hoje depois a gente vê… e esquece… eu era uma menina, estrela do circo Garcia, e hoje eu sou uma mulher, com filhos adultos… e onde a gente vai trabalhar? Agora nós somos os tiozinhos do espetáculo.
Foi uma entrevista tão rica que foi difícil cortar trechos para colocar aqui… tudo era tão importante e fazia tanto sentido! Toda a conversa me fez pensar se há diferença entre ofício, trabalho, vocação… Vejo que o “ser artista circense” faz parte da própria constituição do sujeito… me parece ser muito diferente de um engenheiro, um vendedor… a relação com o trabalho é outra… Um vendedor, vende sua mercadoria e o artista? Quando Ranny diz, “tem coisas que vc não consegue fazer, vc precisa ser para fazer… E agora, como viver desse ser? Como vender esse ser? Como esse ser vira seu trabalho? São pra mim questões ainda sem resposta… e talvez por isso estes artistas que, segundo eles mesmos dizem, viviam num mundo dentro do mundo… agora que saem e tudo muda… como viver neste novo mundo…? Quais as novas relações a serem estabelecidas?
Priscila Jácomo