Rokan e Ranny

Conheci Rokan e Ranny quando fomos filmar a entrevista da Amercy no parque Vila Lobos. Logo no portão, quando conversávamos com os seguranças do parque, vi um senhor elegante com um cordão dourado escrito ROKAN e reconheci o nome, já tinha visto escrito na listinha que a Marília havia me mostrado com os nomes dos moradores dos “Sem Terra”. Conversamos um pouco por lá e em seguida marcamos a entrevista que foi feita no apartamento do casal. Eles não moram no Cingapura, vivem num apartamento no bairro do Limão, próximo ao terreno.

De novo, como acontece em todas as casas dos circenses que entrevistamos, o circo “transborda” ali… é bonito ver como o trabalho, a profissão, o ofício… seja lá o nome que a gente dá pra isso, invade a vida do artista e deixa sua casa uma casa de artista. Logo na porta há uma plaquinha “Aqui vive um mago”. Sim, e também vive uma mulher linda, um garoto muito simpático, um coelho que não tem nome e várias pombas. E muitas coisas são decoradas com cartas de baralho, xícaras de café, bule, pratinhos, cinzeiro, tudo com naipes de baralho. Eles nos recebem como artistas, não sei se prepararam de propósito, mas o figurino dos dois combinavam e Rokan estava com uma camiseta que também era enfeitada com uma carta de baralho. Eles começam contando que mágico não era uma categoria que fazia parte de circo. Ranny explica “na verdade na origem o circo era um espetáculo de cavalos, com o tempo, ele foi passando por processos e agregando outros artistas, se eu não me engano o palhaço foi o primeiro que entrou para fazer parte do espetáculo.”  Ranny fala com tanta propriedade sobre a história do circo que eu afirmo: Você é de família circense. E ela: “não, eu aderi ao circo quando conheci o Rokan”. Rokan, também não é de família circense. “Somos agregados mas apaixonados.”

Quadro que fica na sala de jantar.

Rokan é nome artístico de Nilton Ferreira dos Santos. “Na época que eu comecei fazer mágica todos tinham um pseudônimo, aí eu tinha que arrumar um. Tinha um filme naquela época que se chamava Rocambole, era um mágico que fazia o filme, um excelente mágico, ele fazia um ladrão e roubava um cofre. Aí eu falei, se eu colocar rocambole vou copiar o nome do cara, mas se eu tirar o bole e colocar o K e um N vira Rokan, é diferente!”

Ranny é o nome artístico de Maria Goreti de Souza Santos. “Na minha primeira entrada, quando comecei a trabalhar com ele eu gostava muito do nome Tabata, que era a filha da Feiticeira, mas todos pensavam que era a filha da Feiticeira de fato… Foi anunciado só uma vez. Depois eu era a partner, “Rokan o mágico dos dedos de ouro e sua partner”. A partner no circo é quase que nada, eles não falam o nome da partner. Mas eu falei um dia, Rokan, não fala partner, porque quem está na plateia fica achando que o nome de toda mulher que entra é partner. Então ficou só Rokan. Aí, um dia precisamos de um documento para comprovar que eu era artista, que eu trabalhava e meu nome não estava em lugar nenhum. No terreno do Anhembi, tinha um amigo nosso que era domador, e sempre que passava perto do Rokan dizia, Ô Marajá! Porque domador precisa estar ligado o tempo todo, porque tem tigre e não pode descuidar, e o Souza corria o dia inteiro pra lá e pra cá e o Rokan deitado vendo vídeos de mágica. Mas ele achava que o Rokan não estava fazendo nada. Eu fazia palavras cruzadas na época e mulher de marajá é Ranny, aí eu falei, ele é o marajá e eu sou a mulher do marajá aí eu achei que soou legal e ficou Rokan e Ranny.

Quadro de São João Bosco na sala de jantar. Segundo Rokan, João Bosco é padroeiro dos mágicos porque fazia mágicas de bolso para atrair crianças para a igreja.

Rokan conta que começou a fazer mágica antes de ir para o circo. “Comecei a fazer mágica com 16 anos quando um vendedor de livros fez uma mágica com um dadinho e me ensinou. Aí meu interesse pela mágica foi crescendo, eu fazia mágica para todo mundo. Eu trabalhava como office boy e descobri uma loja de mágicas na rua 24 de maio. Eu ficava sempre olhando e um dia vi o vendedor manipular uma bolinha. Mas o jogo das bolinhas era muito caro e eu não tinha dinheiro pra comprar. No fundo do meu quintal tinha um limoeiro, aí eu peguei um limão e comecei a manipular. Imagina o dia todo com um limão no bolso do paletó rodando com uma mão e com a outra, peguei uma habilidade enorme. Aí, voltei na loja e pedi pra ver a bolinha, comecei a manipular e o vendedor: Nossa, você manipula bem!! E fez uma mágica para a bolinha desaparecer de uma maneira que eu vi e eu perguntei, tem mais alguma coisa? E ele começou a me mostrar achando que eu fosse mágico. Aí eu cheguei em casa treinei, treinei e juntei dinheiro para comprar as bolinhas de manipulação. Na mesma loja, vi um anúncio que teria um show de mágica no Natal. Fui com o meu primo e fiz uma premonição: Eu vou trabalhar nesse show. Aí fui seguindo, fiquei sócio da associação de mágicos e comecei a participar trabalhando nas reuniões. Um dia teve um torneio interno e eu ganhei o primeiro prêmio. Aí, o presidente me chamou para encerrar o show de natal e minha premonição deu certo.”

“A partir daí comecei a fazer shows em boates, e surgiram convites de circos pequenos, o Circo do Chiquinho, o Circo do Carlito, o Circo Guaraciaba… aí um dia eu estava no café dos artistas e chegou o secretário do circo Garcia, o senhor Lamas, e ele me perguntou se me interessava fazer a estreia em Ribeirão Preto. Aí eu fui e depois me chamaram para seguir com o circo e a gente foi. Aí entramos para o circo de vez.

Isso foi em 79 e Rokan e Ranny já estavam casados. Eles se conheceram num circo pequeno, de bairro. Ele tinha ido passear e ela tinha ido assistir. “Em menos de um ano já estávamos casados”.

Ranny conta “eu era bancária, eu era só a mulher do mágico, só uma companheira que dava uma força, que levava a mala para o camarim, aí lá já era o espaço dele, eu não me envolvia com o pessoal de circo porque o meu lugar não era ali, eu não fazia parte daquele mundo, eu sou uma pessoa que tenho muita noção de quem eu sou, aquele espaço era pra quem trabalha.”

Mas ao mesmo tempo ela diz ‘’desde que a gente nasce, quando a gente conhece o brilho a gente quer brilhar, antes de conhecê-lo eu já me imaginava num espetáculo, porque na escola eu já participava de orfeão. Eu já tinha alguma coisa, o artista já nasce com alguma coisa. Eu pra minha idade eu era a menor da turma, aí ficava assim, uma bonequinha que fala bem. Aí eu imaginava assim, já pensou se aparece uma coisa e explode e eu apareço lá no meio! Mas nem imaginava que isso era mágica, eu nunca tinha visto mágica, eu fui ver mágica eu já tinha uns 16 anos. Meu irmão ganhou uma caixa de mágica, aí você pega o que tem dentro da caixa e não tem graça nenhuma porque falta o charme. Não é o número que é importante mas como você apresenta o número. Eu achava meio sem graça aquilo, você pega um palito tem que atravessar o alfinete e não acontecia nada. Comecei a namorar o Rokan no dia 21 de novembro e em dezembro ele ia fazer um show para uma empresa e me convidou aí, se faltava alguma coisa para apaixonar foi ali. Ele fez uma mágica e foi tudo o que eu imaginava, a mão, o jeito, a movimentação… realmente foi o detalhe que estava faltando e eu falei “mas ele é tudo isso!” e ainda tem um amor pelo que ele está fazendo! Porque eu acho que o artista quando ele é verdadeiro ele consegue empolgar a plateia, se ele não empolga a plateia ele não está sendo verdadeiro, ele está fazendo ou pelo dinheiro, ou porque ele tem que cumprir o programa então, quem ama o que faz, é com dor de barriga, é com dor de cabeça, é com diarreia. Tem um caso clássico de diarreia no circo inteiro. No circo Garcia, depois de uma ceia de natal com um buffet finíssimo descobrimos que a maionese estava mal sucedida, complementa Rokan. Agora vc imagina a cia inteira entre picadeiro e banheiro. Rokan comenta: “A cia toda, menos o mágico. Porque o mágico tem um instinto, eu falei pra ela, não come essa maionese que esta estragada, ela não comeu, eu não comi e a gente não teve nada.”

“Eu me apaixonei pelo trabalho dele, vi que ele era uma pessoa que se entregava para o que  fazia, e ele faz manipulação que é o mais bonito de tudo, tem uma coisa de mexer com a mão, um charme assim que você não consegue fazer, você tem que ser pra fazer.”

“Eu sempre fui a mulher do mágico e as pessoas perguntavam, mas ela não trabalha? Ela é bonitinha, coloca ela ali pra segurar. Tinha show que as pessoas até me convidavam, queriam pagar cachê porque eu tinha um sorriso bonito. Mas ele dizia não. Aí, em uma apresentação no Ginásio do Ibirapuera, que é imenso, ele precisava colocar mágicas maiores pra que a plateia que tivesse na arquibancada pudesse ver, aí eu fui obrigada a fazer parte desse mundo artístico.”

Rokan conta “ela sempre teve medo de entrar no palco. Eu fui fazer um show e pensei, vou fazer ela entrar. Fiz assim, pedi pra ela segurar um copo de água na coxia e disse, na hora que eu pedir você me entrega tá? Era um número que eu fazia com jornal, jogava água no jornal e ele desaparecia.” Aí  quando ele precisou  da água, chamou Ranny e fez com que ela ficasse lá o número inteiro, foi a estréia dela.

“Na verdade isso foi um teste que ele fez comigo, ele quis ver como eu ia me portar na frente de uma plateia eu entrei e me posicionei, o coração disparado….Eu já tinha participado de orfeão na escola, de jogral… você sabe que tá todo mundo te olhando… (orfeão é um grupo que canta) e eu já tinha essa coisa, a professora dizia, se pousar um elefante no nariz não é para se mexer. Aí começou o meu treinamento, vc está em cena mantenha-se numa postura elegante, mantenha-se sorrindo e esquece quem está em volta, quem está na frente, quem está atrás.”

“Aí, entrei no picadeiro pra ser partner, depois fui ser dançarina. Eu sou uma pessoa que a emoção fala mais que eu. Estávamos para estreiar em São Paulo, figurino novo, fantástico, eu entrava de mascara, de palhaço, ninguém ia ver nossa cara mas eu estava muito nervosa e quando terminou eu chorava tanto porque tinha dado certo… é aquela coisa da entrega, não importa se tem uma máscara te cobrindo, vc tem que dar o melhor. Eu sorria por baixo da mascara. E as pessoas diziam, ai como vc é boba, foi só um bailado. Pra mim não foi só um bailado, pra mim, ninguém sabia que aquela era eu mas eu sabia que eu fiz a minha parte bem. E é isso o profissional, não é quem vive daquilo, mas é quem faz bem, o circo é isso, é o profissional que é dedicado a arte dele, ele é dedicado ao figurino, ele é dedicado com o horário, ele é dedicado com os colegas e com o ambiente dele. Esse é o profissional, é um cara que todo mundo quer trabalhar porque o espetáculo rende. E quando o espetáculo rende, vem público, o espetáculo corre alegre, tudo dá certo, tudo tem brilho. Se vc entra num espetáculo e as pessoas não tem esse entrosamento vc sente ele pesado, o próprio público,chega e fica constrangido de aplaudir, porque não tem aquela energia. O publico percebe. Essa coisa de energia, não é boato, não é lenda não é fabula, é de verdade. A gente emana coisa boa, se vc vai fazer um trabalho, sincero, se vc se entrega o público sente aquilo e quando vc ve determinado número o público não agradou as pessoas falam o público está ruim, estão com preguiça de aplaudir, mas quando o profissional entra aí… não tem plateia que não aplauda…

Ou de repente quando vc vai comprimentar e vc bate o olho na pessoa que tá te olhando e o sorriso está até aqui porque vc passou alegria para ela. As vezes eu saio chorando e ele fala o que foi, eu falo que na hora que eu fui comprimentar eu senti a emoção da pessoa que tá me agradecendo porque foi um momento bom que ela passou ali,. E é isso que vale a pena. A gente briga pela memória do circo, pelo respeito pelo circo… se a gente, entre nós, circenses, agregados ou de famílias tradicionais… a gente não teve esse benefício de ter nascido debaixo da lona, a gente escolheu o circo a gente adotou o circo como nossa casa a gente se dedica para as pessoas, no caso dele que é magico as pessoas falam que a gente esta ali para enganar, eles falam, vc vai me enganar mas eu vou descobrir, a gente não quer enganar ninguém a gente quer só passar a fantasia de que vc pode fazer, independente de como vc vai fazer, vc vai fazer, se vc pegar um lenço e conseguir tirar um pombo…lógico que atrás disso tem toda uma técnica mas vc pode pegar uma coisa no seu dia a dia, um trabalho que é difícil e fazer uma mágica a partir daí. Vc vai ser o mágico da sua vida, vc vai transformar.

É emocionante ouvir Ranny falar de circo…! Ela fala tudo com tanta propriedade, com tanto encantamento, com tanta ética… aí fico aqui pensando… ela diz que é “agregada” porque não nasceu debaixo da lona. Os agregados são aqueles que não têm a “serragem correndo nas veias”, que não são de famílias tradicionais circenses. É… talvez a serragem não corre nas veias… mas na alma…! Porque ela mesma disse, tem coisas que você não consegue fazer, você precisa ser pra fazer. É um casal que é e faz!

Durante a entrevista Ranny titubeou para contar um episódio que quase fez com que ela desistisse do circo…

“A gente estava no circo Garcia em Campinas e lá aconteceu um negócio muito chato. A gente tinha um amigo contorcionista que se chamava Omar, um excelente contorcionista. Ele entrava no picadeiro com uma postura…tinha uma banquilha baixinha e punha a mão assim e começava o tema da missão impossível e ele fazendo contorção em cima da banquilha aproveitando cada movimento da música. E ele terminava de uma maneira fantástica, era um artista espetacular. E saía com a mesma elegância, comprimentava e ia. E ele era uma pessoa muito querida no circo.A gente tinha um filho pequeno, não tinha trailer ficava vindo para são Paulo e tinha dificuldade para deixar o bebe. O omar e pegava o bebê e dizia, vamos lá assistir sua mãe… ficava com o bebê o tempo todo. Terminou o espetáculo de sexta-feira, o nosso padrinho de casamento era um empresário e quis levar a gente para comer numa pizzaria, e o Rokan falou, vou levar o Omar, vou chamar ele p ir com a gente sair um pouco do circo… mas o Omar disse não, nós vamos fazer um churrasquinho, as meninas estão aqui, as meninas eram as bailarinas, ele ficou. No dia seguinte, a gente está assistindo um jornal local da região de Campinas e aí eu escuto assim “O contorcionista do circo Garcia, Omar Alcides Cegóvia foi assassinado nesta madrugada…” e aí caiu o mundo, porque vc não acredita que num ambiente de tanta alegria vai acontecer uma coisa dessas. Aí a gente correu pro circo, chegamos lá estava tudo muito triste, todo mundo chorando porque ele era muito querido. Foi um bilheteiro que tinha dentro do circo. E até aí tudo bem, acontece aqui, acontece lá, acontece em qualquer lugar… mas o que mais magoou é que era um sábado, três horas da tarde tinha espetáculo, cinco e meia outro e nove da noite outro, até aí tudo bem a gente entende o show tem que continuar, isso é milenar, o show tem que continuar, mas o que doeu é que três horas da tarde, a hora que estava começando o espetáculo, todo mundo com aquela dor no coração sorrindo e chorando ao mesmo tempo, aí chegaram umas meninas  e disseram, vcs sabiam que o Omar já foi enterrado? Como assim enterrado? Porque morreu de madrugada, como assim já foi enterrado? e foi… pra não fazer escândalo na mídia… ele foi enterrado na hora do espetáculo…aquilo foi… o dia mais difícil de trabalhar… nem quando meu pai faleceu, nem quando a mae dele faleceu, a gente sofreu tanto pra trabalhar. O espetáculo continuou a dona Carola trabalhava no espetáculo… aí falaram, não é pra falar com a imprensa, não é pra comentar… aí o Rokan comentou, gente muito mais conhecida todo mundo fala, porque não pode falar que o cara morreu? Aí a dona Carola justificou, que quanto mais fala, mais a gente vai ficar aumentando o assunto, e não é um lado legal pra ser lembrado.Aí o que fizemos, trabalhamos com o coração na mão e depois a mídia foi com a gente até o cemitério, essa parte foi bonita, nós fomos de carreata do circo até o cemitério. Isso me entristeceu muito, eu falei pra ele, se vc quiser continuar vc continua, eu não vou conseguir entrar e sorrir igual eu não vou ser verdadeira, aí eu vim pra são Paulo e logo depois ele veio. Aí voltei grávida, não sabia que estava gravida. Aí meu filho nasceu no dia 20 de janeiro e no dia 21 de fevereiro voltamos para o circo, já com aquele calo… eu não tinha esquecido…vc vê até hoje, tem 32 anos e eu ainda fiquei emocionada mas a gente aprende que cada um tem um jeito de interpretar a dor, de sentir e de ser. Aì a gente foi p sul, depois minas, depois centro oeste… e foi nossa vida por mais de 14 anos, itinerante.

“Depois que o circo rodou bastante chegamos em SP, o nosso filho mais velho já estava com 9 anos de idade, o outro estava com 7, então eu falei, vamos dar um tempo para estabilizar a nossa vida, dar a oportunidade dos meninos se fixarem, escolherem o que eles querem fazer, porque até o ensino fundamental, você conseguia levar legal trabalhando no circo mas depois é bem sacrificante para o circenses, porque de um estado para o currículo muda.

“E tem um detalhe, a educação da criança do circo é diferente, uma crianças não vai te chamar Ô Priscila, mas dona Priscila, a senhora Priscila, no circo a gente se trata assim até hoje Oi dona Goreti, oi senhor Rokan, eles tratam assim. Eu prezo muito isso. A educação é diferente, o respeito é diferente. O circo tem essa coisa do respeito. As novas gerações estão perdendo um pouco isso, porque? a internet, a nova linguagem, as releituras, que eu não sei pra que tanta releitura, estão acabando com uma coisa que não podiam acabar. Esse respeito, e a gente tinha isso no nosso espaço, a gente saia e deixava a casa destrancada e todo mundo respeitava. A gente não interfere na privacidade do outro, o circo tem isso apesar da gente viver num ambiente que parece frágil, do trailer ser uma coisa que parece asism muito exposta, vc fala dentro do trailer e do lado de fora vc ouve, mas cada um tem a sua vida individualizada, ninguém invade o espaço de ninguém é muito legal esse respeito que nos tínhamos e que as gerações mais antigas do circo até hoje preservam. Não falar malapalavras, malapalavras é palavrão. Mas a partir do momento que você liga a televisão e vê um apresentador de televisão te cuspindo um monte de porcaria, palavrão explícito, aquilo acaba virando coloquial e não é mais palavrão. Então como você vai falar para o menino que ele não pode falar determinada palavra porque é palavrão. Hoje a televisão está escancarando coisas terríveis e é o que está acabando com a arte.”

Rokan e Ranny viveram no terreno do Anhembi e em seguida foram para o terreno do bairro do Limão.

“Chegamos no Anhembi e já estavam a família Sbano, o senhor Zurka Sbano, o Eduardo Sbano e a família do Marcelo Sbano, a Liliana da família do senhor Maranhão, a Marília já estava lá com o Hilário e queria guardar um pedacinho para a Liliana que estava saindo do Orfei. E aí eu vi que era muito legal morar ali  porque a gente se cuidava, a gente não tinha segurança mas ninguém entrava ali. Eu não sei o que as pessoas da rua pensavam da gente mas ninguém entrava e sempre tinha alguém do circo ali no terreno, tinha cachorro. Aí nossa comunidade começou a crescer. . Tinha escola perto, os meninos tinham essa facilidade.

Aí um dia chegou um senhor e chamou todos para uma reunião, “vcs estão morando aqui mas nos vamos fazer o sambódromo” e aí a gente falou pra eles que a gente não era invasor que o espaço era nosso, era do circo.Eu até levantei a bandeira, nós não queremos nada, a gente não quer sacramentar “daqui eu não saio daqui ninguém me tira”, vcs querem o espaço ok a gente sai, só que a gente quer um espaço para nós continuarmos morando porque o circo precisa disso.

“O Zurka Sbano tinha número de cavalos e não pretendia mais viajar, tinha uma barraca enorme pra cuidar dos cavalos dele, ele fazia os cavalos se exercitarem, ele precisava de um espaço grande e a gente já sabia que não sairia mais. Os filhos trabalhavam junto com o pai, tinham a oportunidade de fazer cachê aqui em são Paulo sem estar se locomovendo com toda aquela parafernália de circo, levando cavalo, arrumando caminhão etc aí já tínhamos três famílias. Nós precisávamos primeiro fixar um ponto, ter uma casa para depois a gente partir p estrada novamente. A Marília também não pretendia mais viajar. Aquilo foi virando uma família, se protegendo.”

“Na época, o foco era todo aqui em São Paulo, tinha o café dos artistas na São João, ninguém tinha telefone, então era lá que os contratos aconteciam, vinham os empresários… Ali fervilhava, até o Silvio Santos frequentava. Era aí que as notícias chegavam.”

“A Gente precisava desse espaço fixo porque, a São  Joao praticamente não existia mais, as pessoas iam se cumprimentavam mas já não era mais aquele foco comercial para o circense de contatos.”

“O espaço nunca foi destinado a ser circo-escola, os Sbanos treinavam os filhos, meus filhos treinavam mágica…Mas o circo não precisa de circo-escola. Eu trabalho num ambiente que o Dover trabalha, meu filho quer ser trapezista, quem melhor do que ele para dar as noções para o meu filho? E sem contar que a criança de circo, que foi batizada lá dentro, já sabe tudo… só de olhar  já entende.Tem criança de circo que vc  coloca num aparelho e ela faz um número como se já tivesse feito a vida inteira, porque dentro daquele imaginário dela, ela se viu subindo na corda… eles brincam de circo.Meus filhos brincavam de magico, eram mágicos. O Júnior tinha uns dois anos, o Rokan entrava ele já entrava na lateral e fazia os trejeitos, as movimentações…tudo no imaginário dele. A criança de circo brinca de circo!”

“Antes da gente, no Anhembi, tinha a Academia Piollin de Artes Circenses, onde muitos circenses davam aula. Mas todo mundo foi embora. Nas escolas de circo, o que vc ganha tem que valer a pena, porque aparece um empresário e te paga muito melhor, vc vai ficar dando aula? A coisa do circo escola voltou muito com a Dra Alda Marco Antonio, na época do Quercia, que fez a coisa do circo escola para tirar a molecada da rua, não era com a intenção de formar artistas circenses era mais para terem uma atividade num ambiente sadio. A gente torceu muito p não acabar porque as atividades de circo são uma maneira de vc ter condicionamento físico, diversão e cultura.”

Quando ouvimos as histórias que Ranny conta, conseguimos vizualizar exatamente o momento de transição que o circo brasileiro estava passando… sair do circo que viajava para começar a fazer cachê em São Paulo, o início do projeto de escolas de circo junto com a necessidade de “trabalhar parado”. A importância do café dos artistas enquanto lugar comercial… e a falta que fez quando parou de existir enquanto tal… e todas as dificuldades que o circense foi encontrando nesta transição.

A própria questão do terreno destinado aos circenses foi confuso tanto para quem gerenciava como para os próprios circenses… “O terreno dos sem terra foi bom porque qualquer artista que chegasse em são Paulo sem contrato tinha lugar p ficar, a idéia foi boa porque ele ficava la uma semana de repente aparecia um contrato e já saia. Mandaram a gente criar galinha pra vender ovo, e o Rokan falava, eu sou artista! Eu vou criar galinha? O espaço era para quando as pessoas estivessem chegando de viagem colocar os trailers ali. As pessoas deixavam o trailer e iam ver documentação do carro, documentação própria, documentação eleitoral,problema médico.”

Sobre a invasão, eles contam “vieram falar com a gente, vc vai tirar o trailer, o que vc vai fazer com ele? vou vender! e o que vc vai fazer com o espaço que ele esta ocupando? simplesmente desocupar!! Como eu vou vender uma coisa que não é minha? isso estragou os sem terra… Porque alguém começou a lotear o terreno e começou a vender. Não vou citar nomes, porque a pessoa que dizem que começou a fazer isso nunca me deu a entender que de fato tivesse feito. E aí o que acontecia, vc ia dormir tinha um barraco do lado do seu trailer, de manhã, quando amanhecia tinham 5 era a noite inteira o pessoal martelando, cortando madeira…aí o que os circenses fizeram? entraram no trailer e caíram no mundo porque aquilo virou terra de ninguém…A gente saiu antes da invasão. Aí começou o problema de droga, aí descabou mesmo… ficou um ambiente que não era pra gente mais… pra gente de circo né… O problema era que vc tinha que ficar ali p ganhar o apartamento e muita gente ficou com medo porque começou a entrar gente muito estranha, crimes graves aconteciam ali dentro. Como eu vou sair e viajar, no meu caso eu tinha um filho, eu saía, ia fazer um cruzeiro e deixava meus filhos ali, mas tinha minha comadre que cuidava…tinha toda a minha família do circo cuidando deles… aí começava a sumir botijão de gás, vassoura, bicicleta, deixou fora do trailer… sumia…e com  agente não acontecia isso.”

“O importante de tudo isso é que hoje a gente vê os nossos amigos bens instalados lá, a Marília tem o apartamento dela, o Puchy, o Ivan, a Amercy, a gente fica feliz por isso tb.”

http://youtu.be/_kpkPmaFhmk

E para finalizar a conversa, Ranny deixa um pedido.

“Eu gostaria muito que esse documentário deixasse a memória do circo, a reverência daqueles que já foram e que o espírito continue para os que vão chegar. O respeito por aquele que começou num circo de pano de roda, no circo sem lona, no circo empanado, no circo sem nada, e o espaço pro circense chegar e estar em casa, ir buscar um contrato, sem ter que sair de um circo se sujeitando a ganhar menos porque precisa sair deste pra ir pra outro lugar, porque  não tem pra onde ir. Então ele sabe que ele vai chegar em são Paulo, vai ter o lugar dele, vai fazer os contatos dele e poder escolher. Porque acontece muito com a gente, quando a gente está empregado aparecem muitas ofertas, quando vc precisa, que vc quer sair, a cia tá lotada, meu espetáculo está muito longo… aí se seu número custa mil ele vai te oferecer 200 porque é vc que está pedindo emprego não é ele que tá vindo te buscar. Espero que o circo continue crescendo mas os circenses junto com ele. Porque a gente tem grandes circos hoje, grandes empresários circenses mas o artista na parte financeira não está crescendo tanto como deveria. Mesmo porque o circense é …vive hoje e amanha, depois a gente vê… vamos comprar hoje, vamos fazer hoje depois a gente vê… e esquece… eu era uma menina, estrela do circo Garcia, e hoje eu sou uma mulher, com filhos adultos… e onde a gente vai trabalhar? Agora nós somos os tiozinhos do espetáculo.

http://youtu.be/B-WmuTnH5Q4

Foi uma entrevista tão rica que foi difícil cortar trechos para colocar aqui… tudo era tão importante e fazia tanto sentido! Toda a conversa me fez pensar se há diferença entre ofício, trabalho, vocação… Vejo que o “ser artista circense” faz parte da própria constituição do sujeito… me parece ser muito diferente de um engenheiro, um vendedor… a relação com o trabalho é outra… Um vendedor, vende sua mercadoria e o artista? Quando Ranny diz, “tem coisas que vc não consegue fazer, vc precisa ser para fazer… E agora, como viver desse ser? Como vender esse ser? Como esse ser vira seu trabalho? São pra mim questões ainda sem resposta… e talvez por isso estes artistas que, segundo eles mesmos dizem, viviam num mundo dentro do mundo… agora que saem e tudo muda… como viver neste novo mundo…? Quais as novas relações a serem estabelecidas?

Priscila Jácomo

O coelho chamado “coelho mesmo” passeando pela sala

por circoparaki

“Voou…”

Dover Tangará…

Hoje o dia foi muito triste. Meu amigo voou pra sempre.

Foi uma despedida triste e bonita. Acho que a despedida mais bonita que já vivi. Muitos amigos falando de Dover Tangará, lembrando suas piadas, seu jeito de falar, seu jeito de viver. Falaram do chapéu, uma marca registrada. Camilo, presidente da Abracirco, contou que ganhou um chapéu do trapezista. Verônica, do Centro de Memória do Circo, contou que comprou um chapéu para o trapezista. E lembrei dos vários modelos que ele tinha. Dover sempre foi muito elegante, um galã.

A Amercy contou certa vez, que o circense deve saber como se apresentar para o público, como cumprimentar, como chegar e como sair. O Ivan e a Loren me ensinaram a postura da partner. E vi o quanto esse respeito com a plateia, esse “saber se apresentar para o outro” é importante e é ensinado dentro do circo. É um gesto ao mesmo tempo vaidoso e generoso, como se dissessem “sim, sou incrível mesmo” e “sim, sou incrível e estou aqui para encantar você”. Como aquele homem cavalheiro, que abre a porta do carro para conquistar a moça. E como Dover sabia se apresentar… E como Dover sabia conquistar… E no picadeiro, seu cumprimento era muito conhecido. Lembro da primeira vez que vi o trapezista, no Centro de Memória do Circo. A Verônica brincou e pediu que ele cumprimentasse o público… Aquilo foi muito forte! uma dignidade, um brilho… acho que o cumprimento mais bonito que já vi. E na despedida, quando o caixão entrava no túmulo, Camilo gritou… “Senhoras e Senhores, respeitável público, com vocês o maior trapezista de todos os tempos… Dover Tangará!!!” Como se anunciasse nosso amigo para o outro lado… e todos os amigos aplaudiram… foi lindíssimo! E eu fiquei daqui imaginando ele cumprimentando o outro lado… porque isso vai fazer muita falta do lado de cá…

Priscila Jácomo

por circoparaki

Bel Toledo – Presidente da Cooperativa Paulista de Circo

Bel Toledo é jornalista e foi casada com o circense José Wilson, fundador do Circo Escola Picadeiro. Bel administrava a escola. “Trabalhei na Manchete mas aí entrei no circo, quer dizer, o circo entrou em mim.”

Bel conta que por volta de 1988, o Circo Escola Picadeiro apresentou para a Secretaria do Menor um projeto para fazer uma escola de circo social. Segundo ela, a Secretaria do Menor precisava de um projeto sedutor que interessasse às crianças e a secretária Alda Marco Antônio pensou que no circo. O Circo Escola Picadeiro já existia ali na ponte da Cidade Jardim e aí eles começaram a montar circos escolas na periferia de São Paulo. Já era costume de muitos circenses estacionar o trailer no Circo Escola e com o início do projeto o número de trailers aumentou muito “Começamos a contratar muitos professores para dar aulas” e isso lotou o terreno. “Na época a gente contratou toda a família Sbano que tinha uma estrutura enorme, uma carreta enorme. E no Anhembi tinha um terreno que era para circo. O terreno era chamado Praça do Circo. Era uma época de muita invasão de sem-terra, tinham invadido o Ibirapuera… aí eu falei, sr Sbano, vamos invadir o terreno? Porque aí a gente negocia, chama a imprensa e movimenta a classe.” A família Sbano era muito grande, umas 30 pessoas. “Aí, nos primeiros dias foi muita confusão, mas eles ligaram água e luz e disseram que era provisório… mas ficamos. Aí começaram a chegar outras pessoas, o terreno tinha uma movimentação de 60, 80 pessoas… porque é uma situação difícil, que não existe solução ainda, se você sai do Circo Fiesta, se você está sem contrato, você fica aonde? Tem que pedir por favor para algum circo e os donos não querem, porque é despesa para eles – isso era constante no picadeiro, as pessoas pediam para parar o trailer ali, a gente sempre tinha gente ali.”

Depois dessa “invasão” no Anhembi, na época da gestão da prefeita Luiza Erundina, houve a intenção de construir o Sambódromo no terreno, o SATED entrou na história e ajudou a conseguir o outro terreno para os circenses. “Agora numa situação mais precária, porque como o Anhembi já era terreno para circo, tinham banheiros, tinha luz e era cercado e quando eles mudaram, era só o terreno. Foi tudo meio precário.”

“Quando eles mudaram o senhor Sbano era o capitão e coordenava, então era só circense mesmo. Depois, como não era cercado, os próprios circenses começaram a vender o terreno e virou uma esculhambação. A história que corria era que começaram a cobrar e deixar outras pessoas entrarem aí o senhor Sbano começou a perder o poder. Aí começou a violência e a situação ficou caótica.” ” Aí, como não era mais só de circo muitos foram embora porque o terreno ficou descaracterizado, virou para desfavorecidos.”

Toda essa história que a Bel conta é bastante interessante porque diz muito da própria história que o circo viveu, toda a transição do “circo família” para as escolas de circo. “Os donos de circo não gostavam do projeto dos circos escolas porque os professores tinham salários, tinham melhores condições de trabalho… a gente pegava pessoas que não estavam mais no picadeiro mas tinham o saber. Aí houve um resgate de cidadania muito grande. Foi uma experiência interessante porque este saber era um tesouro para ser passado para a família… e tinha um certo ressentimento que os instrutores passassem as informações para quem não era de circo.”

“Neste projeto de escolas de circo, as coordenações mudaram, Ongs assumiram e aí tudo mudou muito… não eram só professores de circo, eram também professores de educação física. Isso também desarticulou o projeto.”

A nossa pesquisa constatou que os circenses em princípio iriam só estacionar o trailer enquanto aguardavam novos contratos… mas esse estacionar acabou se tornando “parar mesmo” ou “trabalhar parado” como muitos deles falam. Isso foi uma mudança importantíssima. Ivan, o malabarista cubano foi professor, Amercy Marrocos, Puchy e Loren, Pepin e Florcita… praticamente todos eles foram professores deste projeto que teve início em 1988 (alguns chamam de “Projeto Enturmando”). É lindo ouvi-los falar sobre a possibilidade de ensinar o que aprenderam dos pais. Sobre o orgulho de ensinar a arte. E é bonito aprender enquanto eles contam… Puchy diz que não é só fazer o aparelho, mas saber montar o aparelho… Amercy diz que não é apenas fazer o salto mas saber como se apresentar, cumprimentar o público… Pepin diz que o palhaço além de fazer rir precisa entender de pessoas, e saber com quem brinca, quando pode sentar no colo de alguém e quando não… realmente são ensinamentos brilhantes. E na semana passada encontrei com Puchy e ele me disse que este projeto “foi encerrado” no local onde ele trabalhava… e fiquei muito triste por imaginar o tamanho desta perda…

Priscila Jácomo

por circoparaki

Romeu Alves, o criador da MONGA

Romeu é de família circense. Seu pai era dono do Circo-Teatro Guaianazes, fundado em 1952. “O circo foi fundado em Guaianazes mesmo, só tinham 3 casinhas e a estação. Era o tempo da vaca gorda, a atração e a diversão era o circo. Não tinha televisão na época, tanto que até cantores famosos cantavam no circo, Tonico e Tinoco, Nelson Gonçalves…” Romeu trabalhou no circo do pai “fazia parada, fui trapezista, fiz número de argola, até suerê eu fazia.” “Meu avô morava no Rio, meu pai que foi atrás do circo, conheceu a minha mãe, aí minha avó pintou a cara dele e ele virou palhaço, o palhaço Bombinha.” Isso aconteceu por volta de 1940. “Na época, meu avô era um empresário muito forte, estava na cidade aí… O circo chegou!!! Hoje infelizmente… circo-teatro de família não existe mais…” Romeu conta que tem muita saudade do circo, “nasci no circo, aprendi tudo em circo, aí veio a decadência e apareceram outras oportunidades. Quando surgiu a coisa da mulher-macaco foi um estouro. Romeu foi o criador da “Monga, a mulher macaco”, atração do Playcenter por 12 anos. “O Flávio Cavalcanti (apresentador de tv) estava procurando o truque da mulher macaco mas ninguém tinha, aí meu tio Geraldo me deu a idéia “olha, acho que sei fazer isso aí, se a gente arrumar dinheiro a gente monta” aí ganhamos o dinheiro para fazer o aparelho e nos apresentamos. Foi um sucesso!! Aí começamos a vender a mulher macaco para feiras, festas de peão, aí veio o Playcenter, aí já era Monga a mulher macaco.” O truque da metamorfose existe há mais de cem anos e é um dos melhores truques do mágico, o ilusionismo. Romeu criou a Monga. O nome veio por acaso… “pensamos em Gonga, King Kong… aí eu disse, mas é mulher! aí veio Monga. Monga soou bem.” A Monga foi uma das atrações do Playcenter por 12 anos. Após o fim do contrato, Romeu continuou com a Monga em festas, feiras do interior mas precisou aposentar a brincadeira… ” a coisa começou a ficar violenta, puxaram até faca p/ a Monga, apontaram arma…era uma brincadeira!” Foi divertido ouvir esta história porque a Monga fez parte da minha infância e da infância de muitos amigos meus… Uma amiga brincou que até hoje, quando ela fica muito tempo sem depilar se chama de Monga!

Logo em seguida, Romeu fez uma parceria com um amigo e comprou um parque de diversões. Uma coincidência importante aconteceu… o parque era vizinho ao terreno dos circenses. “Cheguei aqui com o parque em 1991 quando a turma do circo já estava por aqui. Eu já conhecia quase todos. Quando me viram perguntaram se tinha ido passear ali, mas eu já tinha o parque.” “Sempre tive uma relação muito boa com todos eles, eles sabiam que eu era de circo. A época mais feliz da minha vida foi no circo.” Romeu é citado por vários dos entrevistados como um dos frequentadores do bar da Marília, disseram que ele, Dover e Mulambo cantavam até amanhecer por lá. Ele não vivia no terreno mas frequentava muito. ” A invasão aconteceu porque o povo começou a vender o espaço porque até então, tinha uma favela ali,tinha o terreno e aqui era só gente de circo. Aí virou uma favela. Aí eu comecei a ter medo de ir lá, tinha história que rolou até homicídio lá dentro. Aí estragou tudo… deixaram invadir, virou baderna..aí quem pôde sair saiu…eu parei de frequentar… começou a aparecer droga….” E Romeu finaliza: “é o progresso né, veio o viaduto e passou bem em cima, na cabeça do circense, a corda arrebenta onde? na parte pobre, já machucada…”

Priscila Jácomo

por circoparaki

Apt 13 – Bloco 11 – Marília de Dirceu

Nós temos dois grandes protagonistas nesta história, Dover Tangará e Marília de Dirceu. Se você der uma lida na página “antes daki” deste blog vai entender um pouco. Conheci a Marília no ano passado, “a mulher mais forte do mundo”, foi portô de voo de um volante de 80 quilos, foi uma das primeiras mulheres motoqueira do globo da morte e tem toda esta força concentrada num corpo bem pequeno, mais ou menos um metro e meio de altura.

Marília é cria do Circo Garcia, nasceu e foi criada lá, seus pais trabalharam 62 anos neste circo. “Meu pai sempre quis que eu aprendesse muita coisa. Tive uma infância muito bonita.” Marília estudou em um colégio de freiras no Tucuruvi, em São Paulo, dos 6 aos 10 anos. Era um colégio interno. Depois seguiu com o circo. Começou a cantar profissionalmente aos 12 anos, estreou no Teatro Municipal do Recife, cantando “Aquarela do Brasil” com Geraldo Rios e uma orquestra. Em seguida, foi contratada por um programa de auditório no Recife chamado Vitrine. Logo depois começou a cantar na segunda parte do circo, que era show radiofônico. “Aí com 14 pra 15 anos eu casei, aí já nasceu a minha primeira filha. E foi por uma aposta que eu casei! Eu era a caçula das ingênuas do Garcia, tinha 15 anos. A Anita Garcia, uma mulher lindíssima, a Morfaia que também era linda e eu éramos as três solteiras do circo. Nesta época o Garcia contratou da Argentina o trio Scalli, que eram acrobatas famosos. Aí a gente combinou, vc namora o mais jovem, vc o do meio e a Anita ia namorar o mais velho. Aí quando eles chegaram, o mais velho era um coroa, o do meio já veio casado com a filha do Piollin e o que sobrou foi o Radamés, o mais jovem de 17 anos. Aí elas falaram, sobrou pra você!”. Mas eles ainda eram muito novos “eu vendia fotos naquela época, aí a gente esperava o circo lotar e ia namorar embaixo da geral. Aí acabei casando muito jovem.” Foi a primeira vez que Marília parou de trabalhar no picadeiro, porque além de cantar ela tinha números. “Eu fazia um número de escada que não existe mais, meu pai desenhou uma mesa toda cromada, com flores cromadas e o meu nome no meio, Marília. Em cima da mesa tinham 4 garrafas que equilibravam uma escada que ia até a lona do circo. Eu subia, fazia várias posições, que hoje fazem na corda e no tecido, e terminava equilibrando lá em cima.Mas depois parei de fazer. Meu professor ficava lá embaixo me olhando, me dando sinais para eu ficar em pé. Quando ele foi embora eu não conseguia mais subir, tinha muita confiança nele, aí perdi o número, não fiz mais.” “O outro número que eu fazia também era bem simples, mas agradava muito. Era com uma escada pendurada. Eu entrava, cumprimentava o público e meu pai trazia uma mesinha com uma jarra de água e um copo, tudo coisinha simples, pra criança mesmo porque eu era bem criançona, eu colocava a água no copo e botava na testa. Eu puxava a escada e ia subindo no balanço, equilibrando o copo até chegar lá em cima. Quando chegava lá, cumprimentava o público e tinha que descer por dentro do degrau com o copo na testa. Aí eu fazia de propósito, fazia uma contorção para o copo não bater e eu passava por baixo e o povo gritava pensando que ia cair.” Marília fez muitas coisas simples durante sua vida no circo. Foi uma das primeiras mulheres a ser porto de voo! Bem simples! seu volante pesava simplesmente oitenta quilos. “Logo que me separei do meu marido, o pai das minhas filhas, só existiam duas mulheres que eram porto de voos, eu e a dona Dali. Eu tinha uns 20 e poucos anos e era bem miudinha, mas meu volante pesava 80 quilos, sempre trabalhei com volantes pesados. Marília também foi uma das primeiras mulheres a fazer o globo da morte.

“Meu marido tinha um circo muito bonito, o circo Scalli. Ele contratou o Guido Ponci, que uns dizem que foi o inventor do globo da morte, ele veio da Itália. Na época só eu e a Ivonete Ayres fazíamos o globo da morte.” “Quem ia fazer era o meu marido, o meu cunhado e o senhor Guido. Aí escutei o meu marido falando que não  queria fazer e disse será que minha mulher não quer fazer? Não fala isso pra mim… se eu escutasse será que a Marília faz, eu fazia. Sempre gostei de desafio. Tudo o que eu fiz foi por desafio. Aí ensaiei e estreei na garupa do senhor Guido Ponce, e ele fazia vertical, horizontal, montanha russa… aí eu comecei a ensaiar com bicicleta. Mas como minha perna é curta precisaram fazer uma bicicleta especial pra mim, porque senão eu não alcançava na malha do globo. Aí depois o senhor Guido me perguntou se eu tinha coragem de fazer de motocicleta. E eu falei, tenho, mas é o mesmo caso, precisa adaptar uma moto pra mim porque minha perna é pequena. Aí compraram uma e adaptaram. Pra encerrar a história nós fizemos sete no globo da morte, um trapézio no meio, 3 bicicletas e 3 motocicletas. E depois o senhor Guido inventou um globo com outro globo dentro. Quem vai no mini globo? A Marília! Nós fizemos loucuras! Eu tenho muito orgulho, a gente tinha muito reconhecimento do público, jogavam joias no picadeiro pra mim, eu tenho um colar lindo de madrepérola com macacita, foi jogado no picadeiro pra mim.”

Foi a Marília que me contou toda a história do terreno e que me mostrou documentos incríveis que ela havia guardado com todo cuidado por todos esses anos. A história já era por si só mágica e quando vi os documentos, fiquei mais encantada ainda! Colosso, Pompom, Marcio, Cherozinho, Cida, Ramos, Dover… e o recibo “Recebi de BONECA a quantia de….” Era muito divertido ver os nomes dos palhaços na lista formal, num recibo formal. Eu imaginava o mestre de pista gritando “E com vocês, Boneca!!” e era divertido ver um recibo da Boneca. Foi depois desta conversa que pensei em escrever o projeto que resultou nesta pesquisa. Era de fato uma história que pedia para ser contada, eu só escutei. Marília tinha todos os documentos porque ajudava o senhor Sbano no controle da luz e da água.  (na página pesquisa tem  todos os documentos).

Marília viveu no Anhembi, antes de vir para o terreno no bairro do Limão. “quando o artista de circo encerra um contrato, ele fica desempregado, aí ele vai em qualquer circo e fala com o dono, pede para deixar o trailer lá. Ele não vai trabalhar, ele fica ali esperando outro contrato.” Porque de fato, os artistas não tem onde estacionar o trailer neste período… o contrato da Marília com o Circo de Roma tinha terminado e ela soube que a família Sbano estava parada no Anhembi. Ela conversou com o senhor Sbano e também estacionou por lá. “Lá era muito bom! Nós estavamos num circo. Quando tem dois ou mais trailers já é circo. O artista de circo, que nasceu no circo, não nasceu para ficar preso em algum lugar. Nós temos nossa liberdade.” Marília fala com saudades dessa liberdade, dessa vida no circo. “Quando a gente vê um animal, quando a gente vê um trailer, a gente fica eufórico, a gente sente isso nas veias. Isso é da gente mesmo!” Aí, com o projeto do estacionamento de trailers, Marília veio junto com todas as outras famílias que estavam no Anhembi para o terreno do bairro do Limão. “A nossa convivência era muito boa, chegamos a ter uns 300 trailers, a gente fazia festa de Natal, tinha futebol, tinha o meu bar…” O Bar da Marília foi citado por quase todos os entrevistados por ser um ponto de encontro e de festa. “Eu tinha um toldinho pequeno e fazia um bar ali, aí a dona Carola, dona do Circo Garcia, me fez uma surpresa e me deu uma lona de uns 20 metros, com lâmpadas e um monte de coisa linda. Meu bar ficou a coisa mais linda, cheio de plantas. Eu fazia pizza, salgados, frango assado. Tinham umas 20 mesas. Sempre fazíamos bingo, era uma festa. Na segunda, depois do café dos artistas, muita gente ia para o meu bar, por causa dos amigos. O Dover cantava com o Mulambo, todo mundo se divertia.” “A Boneca, que foi uma grande artista, esposa do Girabel, conseguiu montar um circo ali dentro para dar aulas e para os próprios artistas teremo o seu trabalho ali. Mas muita gente foi contra.” Sobre a invasão Marília conta que a Lígia, presidente do SATED tinha sugerido que colocassem um portão, que cercassem “mas nós circenses não tínhamos aquela malícia. Quem vai invadir sabendo que nós estamos aqui? Pessoal de circo não tem essa malícia, que vão entrar, que vão roubar…aí a gente dormia, acordava e era 5, 6 barracos. Eu nunca imaginei na minha vida que fosse assistir a construção de uma favela.” “Meu pior momento foi enfrentar o mundo aqui fora, porque o nosso mundo é muito diferente desse daqui. Nós, naquele círculo, tínhamos colegas, nosso mundo é ali. Os pensamentos são outros, como eu te falei, minha porta fica sempre aberta, aí me falam, e se entra ladrão? Mas eu não ponho isso na cabeça não.

A casa da Marília é toda enfeitada com muto brilho e bonecas. E me chamava muito a atenção que sempre que eu ia visita-la, a cada dia o sofá estava de um lado, o armário de outro… sempre tinha alguma coisa diferente. Até perguntei se isso tinha alguma coisa a ver com a questão das mudanças que o circo proporcionava, ela não viajava mais mas mudava os móveis de lugar… mas ela disse é mania, de geminiana. “Eu não gosto de ficar num lugar só e não suporto a rotina, meu dia a dia tem que mudar sempre.” Sobre as bonecas, Marília puxou essa outra mania da mãe. “Ela nunca teve uma boneca quando criança e depois que se casou, adorava ganhar bonecas. O trailer dela era cheio de bonecas. Isso eu peguei dela. Adoro bonecas e brilho. Isso vem de circo, minhas roupas sempre tem algum brilho.

Marília recebeu muitos convites para voltar a trabalhar no circo. “Porque palhaço, globista e mágico pode fazer com a idade que for que ninguém repara. Até hoje, com a idade que eu tô eu podia fazer globo da morte. Mas eu não quis voltar.”

Todas as vezes que visito especialmente este bloco do Cingapura, as portas da Marília e da Loren e do Puchy estão abertas. Quando o Ivan estava vivo, a porta dele também ficava. Eles transitam entre as casas, assistem tv ali, um faz um biscoitinho e  leva no apartamento do outro. Uma fala comum entre todos é a dificuldade de ficar com as portas fechadas, com as janelas fechadas, isolados no apartamento. Dover dizia que não aguentaria morar num apartamento, que são como jaulas. E se pensarmos em como era a vida deles nos trailers, podemos entender essa dificuldade.”O que a gente estranha do circo é isso, a liberdade da gente, eu fico esperando a Loren chegar, aí já abro a minha porta e sento lá, eu saio daqui e sento ali.” “Eu conheço o Brasil de ponta a ponta, isso é vivência, é conhecimento,conhecer outras vidas, outros lugares.” Aí Marília liga a tv, escuta seus cds e imagina “eu viajo todos os dias, eu vou pra tudo quanto é canto, na minha imaginação.” “Sempre gostei muito de cantar, sinto falta de gente, sinto falta de rir , as vezes ia para o Carrefour a pé, cantando muito, o vento no rosto…”

E pra terminar a lindíssima conversa, Marília diz o seguinte: “Os artistas de circo, os antigos, nunca ficaram bem de situação financeira porque nunca valorizavam o dinheiro, nunca deram importância. Nós queríamos roupas bonitas, muitas plumas para o picadeiro. O nosso luxo era esse, a gente valorizava o picadeiro. Hoje não é assim.”

E eu a cada dia me sinto mais honrada de poder ouvir histórias de pessoas que foram criadas no circo. E quando penso no verbo criar, fui criada em São Paulo, sou atriz, sou produtora, sou filha, sou mulher….são muitos personagens… e eles foram criados no Circo e são circenses… é tudo junto… não tem personagem! Não tem personagem em nenhum momento! No teatro os atores criam a ilusão, o humano está lá mas está poetizado… o ator volta para casa, vai ao supermercado… no circo o humano está lá de fato! Ele não volta para casa…não é apenas um trabalho, a arte transborda para a vida, é a vida deles.

Priscila Jácomo

por circoparaki

Apt 52 – Bloco 11 – Dona Maria

Dona Maria não é circense. Ela e seu marido, o sr Ferrugem, viviam no terreno antes dos circenses chegarem. “Não tinha Carrefour, não tinha rádio atual, o terreno era vazio, de um lado ficava a Concretex e do outro lado era um estacionamento.” Os dois eram caseiros do estacionamento. Assim que os circenses chegaram no terreno foram na casinha de dona Maria pedir luz e água. Ela ficou muito próxima da comunidade circense e guarda boas lembranças da convivência com eles. ” Eu adorava esse povo, era bom demais! O bar da Marília, os bingos… eu ficava no bingo até às 5 da manhã, um dia meu marido falou, ou eu ou a dona Marília! O senhor Romeu cantava junto com o Dover e o Mulambo, era uma festa! A gente foi muito feliz!” “Até hoje eu não pago nada para ir em circo, eles tem muita consideração comigo.” Dona Maria também presenciou a invasão e participou de todo o processo, viveu no alojamento e conseguiu um apartamento no Cingapura. Hoje continua vizinha da Marília, da Loren e do Puchy, do Pepin e da Florcita… “Começaram a fazer barracos, era muito rápido, aí vendiam os barracos! e o terreno era da prefeitura! Muita gente comprou barraco aqui, a sorte é que eles também ganharam o apartamento.”

No dia da entrevista com a dona Maria conhecemos a Mairam e a Rafaela, filha e neta da Amercy Marrocos e do falecido palhaço Mulambo. Foi uma tarde deliciosa de conversas no parquinho do Cingapura. Rafaela contou que havia sonhado com o avô. Dover era muito amigo do Mulambo e contou que a última vez que se encontraram cantaram juntos. Os dois eram muito parceiros, segundo o Dover, Mulambo tinha uma voz lindíssima, parecida com a voz do Nelson Gonçalves. Rafaela brincava com as amigas no parquinho e faziam estripulias, subindo nos brinquedos, ficando de cabeça pra baixo… perguntamos se ela fazia alguma coisa no circo ela contou que um dia se equilibrou sozinha na bola, contou para as amigas que o avô era palhaço e mostrou as fotos.

E para finalizar a tarde, ficamos ouvindo Dover e Marília cantarem ao som do violão do Dover. Adeus Guacira, Cartola, Roberto Carlos… até que eles começam “Eu sem você, não sei nem porque, porque sem você, não sei nem chorar…” uma música que tem tanto a ver com a história deles… e eles cantavam essa música alternando os trechos… e eu chorei um montão! Foi lindo!

Priscila Jácomo

por circoparaki

Lígia de Paula – presidente do Sated

Nossa conversa com a Lígia foi no SATED – Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos.

Lígia é presidente do SATED e foi na gestão dela que o projeto do Estacionamento de Trailers para Circenses teve início. “Era uma reclamação da classe circense a perda de espaço para o circo na cidade de São Paulo.” O projeto do estacionamento havia sido idealizado pela Dirce Militello mas foi em 1989, que o SATED levou o projeto para a então prefeita da época, Luiza Erundina. “O projeto visava primeiramente moradia para que os circenses tivessem onde colocar os trailers, também havia a ideia de um museu e de uma escola de circo.” A prefeitura, através da secretaria da habitação selecionou o terreno por volta de 1990 e o sindicato aprovou. “A prefeita deu o espaço como comodato, não poderíamos construir uma casa, por exemplo, tudo tinha que permanecer com atividades como é o circo, da maneira que é feito o circo, levando em consideração o modus vivendi do artista circense.” “O ponto era excelente, tinha muita visibilidade, tínhamos nos comprometido que não tivesse nenhuma publicidade ali, e como o sindicato que tinha assinado o comodato, nós nos comprometíamos a manter tudo como havia sido combinado. Fazíamos assembleias e tiramos um regulamento.” Haviam vários projetos pensados para o terreno, inclusive o de uma horta comunitária.”Fazíamos assembleias, havia votação, as pessoas falavam, Cherozinho era o nosso diretor na época. Não havia a ideia de paternalizar, de coordenar, o sentido era outro, era dar autonomia para aquele agrupamento.”

Lígia conta que o espaço era cercado e tinha uma espécie de um portão, até que em determinado momento, outros segmentos começaram a invadir. “O circense é muito humilde, muito amigo, eles foram enganados. A ocupação aconteceu de uma forma cruel para espantar os artistas. Eles foram retirados daquele espaço. Nós perdemos o espaço e o comodato perdeu o valor. Absurdo o desleixo e destrato com pessoas essenciais.” “Chegou um momento muito triste que começaram a jogar lixo hospitalar, chegavam caminhões e caminhões no espaço, eles chegavam com a placa escondida, tapada. Eu me pus à frente de um deles, quando ele chegou a distância que você está, eu vi que ele ia passar por cima de mim, aí saí. Aí fizemos uma assembleia e eu expus, realmente, daqui não tem mais saída.” Lígia considera que o projeto foi uma vitória para a classe circense. “São Paulo até hoje não tem um espaço para circo. Não tem mais espaço. O circo foi de grande importância para a sociedade brasileira. No passado ele foi o principal veículo de cultura e de conhecimento. A Atividade foi perdendo de acordo com as mudanças que foram acontecendo na cidade.”

Lígia conta que o Sindicato tem avançado bastante na questão da profissionalização do artista circense. “Pela lei 6533 de 1978, a profissão foi regulamentada. É bastante específico, eles estão lá juntos com o dono do circo e muitas vezes eles sequer tinham documentos, CIC, RG. Aí começamos a fazer convites para os donos de circo para regularizar quem não tivesse documento e também para obter o registro profissional.” Lígia conta que o sindicato aposenta muitos artistas e sua mais recente luta é por um espaço para um retiro de artistas. Foi muito bonito ouvi-la contar e ver de fato que ela realmente “veio a negócios”. Que bom que temos pessoas como ela tratando deste tipo de negócio… “o ser humano tem uma dimensão de solidariedade, se eu tenho um saco de arroz eu não vou comer tudo, eu me alimento mas também entrego a marmitinha ao próximo. Eu aprendi isso com a minha mãe. Minha mãe teve 11 filhos, sempre era muita gente, sempre um sendo solidário com o outro, então eu não vejo razão para não perpetuar o que vivi e como tenho que me conduzir no mundo.” Uma coincidência bonita foi esta história do arroz, de dar a marmitinha para o outro, ser muito parecida com uma história que o Paulinho, diretor executivo do SATED, contou sobre a Dirce Militello. E a entrevista termina com uma fala emocionante. “Eu tenho muita esperança no mundo. Porque o mundo vai ser diferente, viu? Pela própria necessidade, a modernidade da vida vai reverter essa história. Quer queira quer não o homem vai ter que aprender a conviver com o outro, vai ter que aprender a conviver com a natureza, vai ter que aprender a conviver com os animais. Não tem mais sentido, ou a gente aprende ou a gente não vai mais viver, então vai ser uma necessidade de você garantir a sua vida. Eu sou humanista e corintiana. Eu vim a negócios, tenho um espírito coletivo e acho que a gente tem que preservar o que faz bem pra gente.”

Priscila Jácomo

por circoparaki

Torcendo pelo super herói

Foi com este texto abaixo e com este vídeo que divulgamos o blog da nossa pesquisa.

“Circo Paraki é um nome que brinca, como se designasse um estacionamento de circo.

Uma história incrível pedia para ser contada. Uma sequência de encontros mágicos pediam uma história. E tudo foi tão grande e inexplicável quanto o último acontecimento. A gente não começa a história num capítulo alegre, pelo contrário, a gente começa num capítulo muito forte, inexplicável e triste.

Mas estamos falando de super-heróis, de homens que voam e dão três saltos no ar. Homens que desafiam os limites e nos mostram que o sagrado e o heróico são também humanos. Homens que nos mostram que o impossível pode acontecer.

E é homenageando o nosso grande amigo e personagem principal desta história, Dover Tangará, que pedimos uma grande corrente de pensamentos alegres como acontece num picadeiro lotado quando a platéia assiste o voo mágico do trapezista, perde o fôlego e depois aplaude aliviada.”

Confesso que estava com muito medo de visitar o trapezista no hospital. Confesso que não estava acreditando na possibilidade do impossível acontecer. Dover foi muito importante na pesquisa, acompanhou todas as entrevistas… seria muito difícil encontra-lo machucado. Demorei a me sentir forte o suficiente. Precisei de muita preparação, fiz pilates, corri, li todos os livros do Valter Hugo Mãe, criei coragem e fui. Claro que fui muito bem acompanhada, chamei Marília, ex-mulher e amigona de Dover. Acho que nunca vi tanta força em uma pessoa num formato tão pequeno, aquela que o volante pesava oitenta quilos com certeza aguentaria um volantes de 99 quilos. Fomos nós duas ao encontro de Dover Tangará em uma UTI de um hospital.

Acho que o pilates funcionou… fiquei bem forte. Dover teve uma pequena melhora e foi possível realizar a traqueostomia, não está mais entubado. Ele está muito presente, com os olhos atentos, reconhece as pessoas, mas ainda não fala. Conversamos com o médico e informamos que ele estava tratando de uma pessoa muito especial, o maior trapezista que o Brasil já conheceu. Ele se emocionou e nos emocionou também. Disse que o quadro de Dover é grave mas estável. Disse que ele precisará realizar uma neurocirurgia de alto risco mas que caso ela tenha sucesso existe a possibilidade de Dover sair sem nenhuma sequela. Vendo a presença do Dover e ouvindo a fala do médico voltei a acreditar no impossível. Sim, talvez seja o salto mais arriscado do trapezista, sim talvez a gente possa aplaudir a façanha. Continuemos torcendo…!

E eu vou fazer mais pilates para ver se crio coragem de ir de palhaça com alguns amigos  e malabaristas para visitarmos o trapezista…levar o circo para uma UTI. O médico já autorizou agora eu preciso ficar mais forte.

Priscila Jácomo

Irmãos Tangarás:

por circoparaki

Sobre a impossibilidade de habitar o solo e viver no sonho.

Tudo é meio muito demais… as histórias são incríveis e quando são contadas parece que acontecem de novo na nossa frente, porque pulsam, porque estão muito vivas. Estas pessoas que são “Super-Homens”, voaram num trapézio, arriscaram a vida num globo da morte, domaram elefantes… é tudo meio grande demais. É como um sonho ou um filme do Fellini. É uma vida tão surpreendente que parece meio incompatível com a vida cotidiana. E de repente você se dá conta que é necessário habitar o solo. A morte do Ivan foi uma coisa muito forte. E agora a angústia é grande. Dover Tangará, o nosso “personagem principal”, aquele que juntou os três pesquisadores e deu o pontapé inicial para que a pesquisa acontecesse esteve sumido. O maior trapezista que o Brasil conheceu vive num trailer próximo aos prédios. Não sabíamos o que tinha acontecido e nem se estava vivo, pelo contrário, as notícias eram as piores. Hoje descobrimos que ele está internado em uma UTI de um hospital. Vítima de violência foi agredido e corre o risco de não poder andar mais. Foi agredido exatamente no terreno onde vivia. No terreno desta história toda. Tudo é meio muito demais! É muito de um lado e muito de outro! O maior trapezista que o Brasil já conheceu, irmão da mulher que conseguiu o terreno junto a prefeitura para que ele fosse destinado aos circenses, não conseguiu um apartamento ali e não tem onde viver. Vive ali por perto, em meio a violência e as drogas. E agora vítima de uma agressão pode não andar nunca mais, se sobreviver… é extremo demais!! Só nos resta torcer para que a porção super-herói deste filósofo voador faça com que sua recuperação seja tão impressionante quanto os voos que ele fazia. Certa vez, conversando com a Marília, ex-mulher de Dover e uma das primeira motoqueiras do globo da morte, depois que ela contou uma história bem triste comentei “nossa, como você é forte!” pensando naquela “força interior” que a gente diz quando uma pessoa passa por algo difícil… E ela me respondeu: “meu volante pesava oitenta quilos!” Eu ri, pensando que ela havia feito um ato falho já que eu dizia de uma “força interior” e ela comentava de uma “força de corpo”. Mas depois pensei: qual seria a diferença?! A força na realidade é uma só. Fico pensando o quanto Dover Tangará deve ser forte afinal ele voa e dá três saltos no ar. Talvez eu que esteja precisando me fortalecer porque viver isso e ao mesmo tempo assistir imagens dele, feliz, tocando violão e cantando emoções do Roberto Carlos está sendo muito difícil…

Priscila Jácomo

Apt 12 – Bloco 11 – Puchy e Loren

O nome dele é Armando Klenque mas, seu nome de palhaço ganhou do nome de batismo, todos só conhecem o Puchy.Isso normalmente acontece com os palhaços, o outro que entrevistamos nasceu Raul mas virou Pepin.

Puchy é da quinta geração de circo. Nasceu na Argentina, viveu num circo na Venezuela e aos dois anos veio para o Brasil. O pai tinha sido contratado por um circo, comprou uma casa e os filhos começaram a estudar. Puchy tinha vontade de ser veterinário, porque sempre gostou de bichos como o avô, que era domador. “Eu estudava e trabalhava no circo, fazia cachês.” Quando ele tinha 17 anos mais ou menos, os pais se separaram e ele foi com o pai para o circo. Foi trapezista, acrobata e trabalhava com cavalos no volteio, fazia salto mortal em cima do cavalo, parada de mão no cavalo, mortal do cavalo para o chão… e foi se aprimorando em animais. Aprendeu a trabalhar com elefantes. “Conheci um domador muito importante que me ensinou a domar um elefante em indiano”, “Porque normalmente o animal entende ou inglês ou alemão, que são vozes mais imperativas, mas este elefante acabou matando muita gente porque só entendia indiano, ninguém conseguia trabalhar com ela.” Ele conta que depois de um tempo este elefante veio para o Brasil e o chamaram de novo para cuidar dela, “quando ela me viu, ficou toda doida, porque o animal reconhece, né. Você sabe qual animal guarda mais rancor? O elefante. Pode passar muito tempo mas ela sempre sabe quem fez mal pra ela. Tinha um capataz que sempre que passava por um, batia, cutucava… um dia ele passou distraído e ela picou ele. Não tinha quem tirasse ele de lá. Morreu.” Essa confusão de ele e ela aí em cima também me confundiu mas logo Puchy explicou que não existe elefante, mas Lia. “Elefante macho é o mais difícil de ser domado, mesmo filhote já mata. Praticamente não existem elefantes machos trabalhando, só lias”. Fizemos a entrevista no apartamento de Puchy, todo enfeitado com palhaços e fotos de circo. De repente, começo a ouvir uns barulhinhos de pássaros “São minhas pombas!”. Ele pega uma delas que depois fica ali solta durante toda a conversa. “Aqui do lado tenho uma pata e lá as pombas. Outro dia deixei a gaiola aberta, estavam todas aqui esparramadas. A sorte que a janela estava fechada.” Puchy atualmente trabalha com magia e por isso as pombas e a pata.

Puchy tem uma recordação bonita do tempo que viveu no circo, tem saudades de tomar banho de bacia, de morar em barraco, de dormir em baixo da lona quando está chovendo e ouvir o barulhinho da chuva “são coisas que eu sinto falta, eu posso ter todo o conforto mas…” Eu já fiz de tudo em circo, já viajei o mundo inteiro, tinha prêmios, era reconhecido e ganhava bem. Comprei uma casa para um amigo, um outro amigo me ajudou a comprar um carro. Um ajudava o outro, era uma união.”

Ele conta que quando acabava o espetáculo todo mundo fazia churrasco, dançava e jogava baralho. “O povo de circo era muito unido antigamente, dono de circo, empregado, artista, todo mundo junto. Se eu ficasse doente, alguém de outro circo vinha se apresentar no meu lugar. Era uma família só. Claro que tinha rivalidade, dentro do picadeiro, na hora do número, um queria agradar mais que o outro, mas era sadio. Hoje as famílias são separadas, antigamente era uma família só. Puchy vê muita diferença de alguns circos hoje e os circos de antigamente. “Hoje é assim, quem faz malabares, só faz malabares, o trapezista só faz trapézio. Eu sempre detestei parada de cabeça, mas sei fazer. Eu detestava mas meu pai me punha. Ali naquela foto estou no arame fazendo parada de cabeça.” “Hoje, se o circo não tiver cheio, o artista entra diferente, com uma maquiagem diferente, não capricha no figurino. Antigamente, se tinham 3, 4 ou 5 pessoas assistindo o espetáculo era o mesmo! Mesmo num circo de 60 metros com 4 pessoas! Hoje eles cortam números.” Puchy viveu no terreno de trailers, foi viajar e quando voltou já tinha acontecido a invasão. “Em frente do meu trailer tinha até jardim, era muito bem cuidado.” No terreno, os trailers estavam dispostos como um circo, um ao lado do outro formando um grande circulo. “Quando voltei de viagem, tinha virado uma favela”. “O pessoal de circo não é de bater de frente. Aí eles começaram a sair porque ficaram com medo. A gente roda o mundo inteiro e conhece o alto e o baixo de todos os países então a gente sabe entrar em lugar bom e sair, entrar em lugar ruim e sair.”Ele conta que conhece o Brasil todo, “não só Campinas, Rio de Janeiro… no norte era assim “me empresta a luz? E as pessoas chamavam para tomar banho na casa delas, aí a gente começa a pegar raiz, eles te davam café… a gente vira da famíla e são amizades que a gente cultiva até hoje.”

Puchy é casado com Loren. Loren também é argentina, sua mãe trabalhou no circo Tihany quando criança fazia dança húngara no espetáculo. O circo veio para o Brasil e as crianças começaram a frequentar a Escola Nacional de Circo. “Eu era apaixonada por contorção.” Loren estreiou seu número de contorção no programa do Carequinha na rede de TV Manchete. Em seguida, trabalhou com a Xuxa na Manchete e na Globo, fez a abertura do programa Balão Mágico e participou com o seu número em todos os programas infantis da época. “eu era a menina que fazia contorção na caixa.”

http://www.youtube.com/watch?v=jDp_hJVuksg  (abertura do Balão Mágico – 1984)

Loren conheceu Puchy aos 7 anos. Ele trabalhava no circo Bartolo que estava na praça XV no Rio. O pai de Puchy, Sr Oscar era professor de Loren e levou a menina para assistir o filho. Puchy fazi arame e bambu no espetáculo. “Eu já falava para o pai dele que ele ia ser meu namorado. Achei ele lindo no arame.” O sr Oscar dizia que a moça ao lado de Puchy era sua irmã mas na verdade era a esposa dele. “Aí eu tinha uns 15 anos e fui fazer um show em uma empresa. O Puchy estava lá fazendo show de magia. Eu sempre gostei de ser partner, e aí fui partner dele. Na época ele estava casado com outra mulher. Mas eu errei tudo, não coloquei a pomba no aparelho, ele abriu e não tinha nada. Ele ficou muito bravo. Aí eu falei, gente mas ele vive casado! Aí quando eu tinha uns 17 anos, encontrei com ele  de novo no circo do Xuxu, aí ele separou e nós ficamos juntos. Já faz 20 anos.”

Os dois são professores de circo e é lindo ouvi-los falar sobre as aulas, sobre os alunos, sobre ensinar a tradição, a arte do circo. Atualmente eles levam muitos alunos para trabalharem com eles que recebem como profissionais. “Já mandamos alunos para o México, para Cuba, são bons! Tem um que tirou a mãe da favela, comprou carro, isso dá muito gosto para nós.” “A gente fala que quem é de circo tem uma química, tem serragem na veia, mas a gente brinca que também pode colocar a serragem, como eles colocam o soro no hospital… é prazeroso ver uma criança que vem da favela, que não tem aquela atenção de pai e mãe… você acaba se apegando e dá carinho, dá afeto, cuida de outro jeito.” Puchy conta que não ensina só a subir nos aparelhos mas também ensina a montar, a desmontar. Ele mesmo faz os equipamentos e leva para a escola. Na época estava procurando uma madeira especial para fazer uma báscula.

Tive o prazer de ser convidada por eles para participar como partner na apresentação que fizemos em homenagem ao Dover Tangará. Foi uma experiência linda que tive e uma aula maravilhosa. Conto mais sobre isso na página paralá deste blog.

Priscila Jácomo